domingo, 10 de julho de 2011

China: o predador oriental

Prosperidade permite aos chineses financiar a matança de rinocerontes, animais cujos chifres são usados como ingrediente pela medicina tradicional do país. E eles não estão sozinhos: as crendices ainda são responsáveis pela morte de lagartos, veados, sapos, ursos e tigres-de-bengala
Mais de 1 bilhão de chineses e outros asiáticos acreditam que ingerir o chifre de rinoceronte em forma de pó diluído é uma receita infalível contra uma infinidade de males, entre eles pressão alta, febre, artrite, inflamações em geral, câncer e até aids. Na realidade, o chifre desse animal é feito da mesma substância que forma as unhas e os cabelos dos seres humanos, a queratina, e o efeito terapêutico de seu consumo é idêntico ao obtido quando alguém rói as próprias unhas, ou seja, nenhum.

Há décadas, a caça ao rinoceronte para recolher seus chifres mantém a espécie na lista dos animais ameaçados de extinção. Nos últimos anos, porém, a situação se tornou crítica. A prosperidade econômica da China e de alguns de seus vizinhos fez multiplicar a demanda por chifres. O quilo do produto tornou-se tão caro quanto o de ouro - vale 60 000 dólares. Antes, só poucos chineses abonados podiam bancar tratamentos com o ingrediente. Meio milhão de chineses já estão na categoria de milionários e o grupo aumenta ao ritmo médio de 10% ao ano. Ou seja, há dinheiro de sobra para bancar a crendice perversa. O mesmo ocorre no Vietnã, que também se beneficia de ventos econômicos favoráveis. O resultado é que a matança de rinocerontes na África do Sul, onde se encontram 90% dos exemplares da espécie, explodiu.

A média de rinocerontes abatidos por caçadores na década passada era de doze por ano. Em 2010, foram mortos 333 animais. No primeiro trimestre deste ano, foram 138. A população de rinocerontes-negros na África soma apenas 4 800 exemplares. A de rinocerontes-brancos, 20 000. Se a caça continuar no ritmo atual, o animal entrará definitivamente na lista vermelha da extinção.

Nos anos 70, o comércio de chifres de rinoceronte foi proibido por meio de um tratado internacional assinado até hoje por 175 países, inclusive pela China. Os únicos resultados práticos do documento foram que o abate passou a ser feito por caçadores clandestinos e o comércio de chifres, no mercado negro. Com o aumento da demanda e dos preços, a caça não apenas se intensificou como se modernizou. Os caçadores, a serviço de grandes quadrilhas internacionais contrabandistas de animais, usam helicópteros, binóculos de visão noturna e armas de grosso calibre para localizar e abater suas presas.

A extinção de qualquer espécie é uma perda inestimável. Mas é particularmente perturbador que o declínio de uma espécie magnífica, que habita a Terra há mais de 5 milhões de anos, seja causado por uma crença sem base racional alguma. Os chifres de rinoceronte já foram analisados por laboratórios europeus e americanos, sempre com resultado idêntico; não oferecem nenhuma qualidade terapêutica. Os poderes a eles atribuídos são apenas parte do conjunto de superstições que compõem a medicina tradicional chinesa, bastante popular no Extremo Oriente. O rinoceronte não é a única presa indefesa do curandeirismo. A medicina chinesa acredita que as características de um animal são transmitidas a quem come sua carne.

É um tipo de entendimento mágico que já foi bastante comum no passado. Canibais, em muitos casos estudados, igualmente agiam com a convicção de que iriam absorver o vigor do inimigo devorado. Isso é interessante quando confinado a estudos antropológicos, mas desastroso quando se multiplica por mais de 1 bilhão de pessoas. Nas farmácias chinesas é possível encontrar itens como lagarto desidratado, pênis de veado e intestinos de sapo.

O valor medicinal associado ao animal aumenta na proporção direta de seu tamanho, beleza e dificuldade de obtê-lo. Essas características fazem do tigre um alvo preferencial. Os chineses atribuem alto poder afrodisíaco a seus testículos, que transformam em iguarias e servem à mesa. Ursos são mantidos em cativeiro por causa de sua bile, o líquido produzido pelo fígado, que imaginam ter o poder de curar uma dúzia de doenças, de febre a males cardíacos. Os animais passam a vida em pequenas jaulas e a extração é feita com punções extremamente dolorosas, que os fazem urrar e morder as patas em desespero.

Os tigres-de-bengala são um dos símbolos nacionais da Índia e é naquele país que os caçadores agem para atender à demanda. Dos 40 mil exemplares da espécie que viviam nas florestas indianas há um século, estima-se que restem apenas 1 000. Um tigre morto e dividido em partes pode render 50 mil dólares nas farmácias chinesas.

A matança dos animais seria, em teoria, menos terrível se isso representasse algum tipo de benefício aos doentes. Mas nem isso ocorre. Diz o médico infectologista Artur Timerman, de São Paulo: "A medicina chinesa só oferece riscos. O doente demora a procurar atendimento médico adequado e pode ser vítima de contaminações".

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